Sunday, February 04, 2007

LÍNGUA E LITERATURA



A PÁTRIA DE JOÃO MELLO: UM ESTADO MULTICULTURAL


MANTOLVANI, Rosangela Manhas
(Doutoranda – USP – Universidade de São Paulo/ CAPES)


Nascido em Luanda em 1955, João Melo cursou Direito em Portugal e, posteriormente, em Angola, e concluiu Comunicação Social no Brasil. Jornalista profissional, trabalhou na Rádio Nacional de Angola, no Jornal de Angola e na Agência Angola Press. Foi secretário-geral da UEA- União dos Escritores Angolanos, atuando, também, em uma agência de comunicação privada. Jornalista e político, atualmente ocupa uma cadeira na Assembléia Legislativa em Angola.


Seus principais trabalhos foram publicados a partir de 1985, sendo sete livros de poemas: Definição (1985), Fabulema (1986), Poemas Angolanos (1989), Tanto Amor (1989), Canção do Nosso Tempo (1989), O Caçador de Nuvens (1993), Limites e Redundâncias (1997); quatro livros de contos: Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir (1998), Serial Killer (2000), Filhos da Pátria (2001), O dia em que o Pato Donaldo comeu pela primeira vez a Margarida (2006); e um ensaio jornalístico, intitulado Jornalismo e Política (1991).


Em Filhos da Pátria, seu segundo livro de contos, como afirma o próprio título, o autor trata de organizar um trabalho perpassado por uma temática principal que trata da representação dos singulares filhos do território angolano e seus complexos destinos - após a implantação do sistema capitalista pós-independência -, percorridos por força das circunstâncias político-econômicas.
O painel humano que se desenha pela representação das personagens é composto por angolanos que, oprimidos pelas forças sociais resultantes das situações de confronto entre os grupos de oposição no interior do território e expulsos pelas más condições de vida, tratam de transferir-se para as cidades, onde ocupam as periferias, dando origem a imensos bairros novos, povoados de casas de areia, os chamados musseques (ou muceques). É no interior dessas construções que se abriga a nova massa de “deslocados”, vindos do mato, de diferentes lugares, e de diversas etnias que constituem o todo de Angola, vivendo à margem do sistema, enquanto tratam de buscar novas formas de sobrevivência.
As denúncias e críticas do autor centram-se nos momentos em que a situação de muitos desses deslocados - lançados ao abandono e à própria sorte - os obriga a práticas marginais na emergente sociedade capitalista do recente país, para garantir a própria sobrevivência, como nos contos “Tio, mi dá só cem” ou “O feto”. O menino infrator que se torna assassino por força das circunstâncias e a garotinha prostituta que pratica aborto, descoberta pela polícia e pela imprensa, representam uma faceta do produto periférico do novo modo de relações que se instituiu no país, quando a conexão do homem com o seu meio cultural nos kimbos é esvanecida pelo processo de esvaziamento do campo.
Outras relações entre as pessoas e os meios de vida na periferia são representados em outros contos, como “Natasha”, que tem como tema a situação de uma estrangeira (russa), moradora da periferia angolana e vive uma situação singular se comparada à sua origem. A personagem se constitui, também, como uma deslocada social, cuja justificativa para tal opção de vida estaria calcada no estereótipo do incontrolável desejo feminino pelo falo dos angolanos, que o autor trata de ironizar e desmitificar. A paródia do amor estóico, neste caso, com a justificativa do irresistível estereótipo, que conduzem o fio narrativo, culminam no desvelamento da condição de miséria em que vive a estrangeira e seus pequenos filhos, estes, também, filhos da pátria. Assim, a temática do amor incondicional é aqui, questionada, bem como a miséria da população infantil, cujo cenário é um dos musseques de Luanda, o bairro Terra Nova. Diz o narrador:


(...) dei de caras com a casa da Natasha: no fundo de um beco qualquer de Terra Nova, tortuoso, esburacado, cheio de poças de água e de uma série de montes de lixo coroados por bandos de moscas de um verde-azulado intenso (...) o seu ar miseravelmente desgrenhado, a pintura completamente desbotada, cheio de fissuras, as portas e as janelas todas descascadas e remendadas, a casa era um autêntico monumento à degradação! Cá fora, duas crianças mulatinhas, uma mais escura que a outra, brincavam na lama com algo que, no passado, deveriam ter sido brinquedos. (Melo, 2001, p. 46)


Tanto neste quanto em outros contos, a temática da miséria associada ao musseque e suas relações, que permitem visualizar, no discurso, as incoerências e contrastes com os contornos políticos do atual sistema, organizam-se em função da exclusão provocada pela transição político-econômica: a passagem de uma economia razoavelmente planejada e planificada para uma abertura capitalista neo-liberal e seu sistema de exclusão já conhecidos em todo chamado terceiro mundo.
A recuperação do contexto do musseque e suas imagens em Filhos da Pátria permite que essa obra estabeleça um diálogo com vários trabalhos importantes da literatura angolana, mais especificamente, com alguns textos considerados como “prosa do musseque” (Macedo, 1990, p. 175), cujas imagens, temas e personagens demonstram a opção do autor por desvelar “o lado de lá dos homens excluídos do círculo dos privilegiados da sociedade e das produções culturais” (Idem, p. 175). Esse diálogo, no entanto, pressupõe a formulação de uma outra abordagem e de diferente forma estética.
A partir dos fins dos anos cinqüenta, os textos que tematizam o musseque terminam por funcionar como referência na representação do universo do colonizado, já nessa época um excluído na periferia da antiga cidade colonial. Nessa literatura destacam-se , segundo Macedo (1990), a fronteira do asfalto, as imagens da Natureza dentro do espaço-musseque, a relação do trabalho entre os espaços da Baixa (em Luanda) e o universo do musseque e, desta forma, a vida e a morte (espancamentos, atropelamentos e interrogatórios humilhantes) que indicam as perseguições da polícia política, a PIDE, durante a ditadura salazarista.
O posicionamento literário nesse contexto histórico-político da década de 50 e 60 do século XX (até alguns produzidos na década de 70) remete à representação e discussão dos valores do habitante do musseque, como a resistência ao colonizador, por exemplo, cuja temática se insere nos textos de Boaventura Cardoso, Jofre Rocha, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Manuel Rui, Jorge Macedo, Antonio Cardoso, entre outros (MACEDO, 1990, p. 183 ). Neles, as imagens dos musseques de Luanda e as situações revividas nas escritas desse período recuperam o espaço das areias como o terreno de luta pela vida e, também, como o espaço em que a morte é ameaça quotidiana (Idem, p. 178-179).
Essa produção da prosa do musseque desconstrói a visão da literatura do colonizador, indicando a opção política de seus autores em reconstruir a faceta do povo, ou seja, revelando uma outra espacialidade e cultura nas temáticas dos excluídos da sociedade (ainda) colonial.
No século XXI, João Melo trata de recuperar essa temática em alguns contos de Filhos da Pátria, cujas imagens dos musseques se organizam ao longo de sua escrita, na representação do espaço ou da situação em que vivem seus habitantes e, ainda dos que procuram o musseque como o último dos refúgios. Porém, a forma de plasmar essas imagens, ou seja, o estilo pelo qual o autor traz à tona essas situações revelam uma outra maneira de compreensão desse espaço. A representação desses espaços surgem como crítica sócio-política-econômica, tendo em vista que se realizam na escrita em contradição a uma outra série de imagens representantes de uma cisão social – os espaços da minoria abastada e muitas vezes oportunista, representados em contos como “O elevador” ou “O cortejo”, onde os que detêm o controle político e econômico dão-se a excessivos luxos, em contraste à grande maioria de sobreviventes da expulsão rural, provocada pelas fugas aos confrontos da guerra civil no campo ou pela apropriação das terras.
Os discursos em torno da identidade nacional e, no caso, a angolana, não se furtam à explícita ironia, em textos como “O efeito estufa”, cujo estereótipo do defensor da autenticidade angolana é desconstruído pelo narrador , por meio da paródia da relação com os produtos culturais representativos da “verdadeira” angolanidade e sua relação com as ideologias da globalização, que termina por deslocar a personagem principal – o estilista – para o bairro da Mutamba, agora em busca da real identidade angolana.
É exatamente por meio desse discurso irônico sobre a “verdadeira” angolanidade que a escrita de João Melo revela sua opção por uma pátria multicultural, onde tanto os brancos nascidos em Angola, quanto os angolanos descendentes de etnias do interior ou mesmo locais e, ainda, os estranjeiros que consolidaram famílias em Angola são representados aqui como filhos de uma pátria em que a pluralidade cultural se apresenta como característica principal e precisa urgentemente ser compreendida e discutida, de forma a atribuir uma identidade plural à nova nação, organizada em torno das diversas etnias, das mestiçagens e da presença de uma cultura eurocêntrica que, quotidianamente, funde-se aos valores das culturas locais.
A questão da constituição multicultural de Angola é discutida em praticamente todos os contos de João Melo, de forma que, ao delinear os contornos das personagens, raramente se esquece de analisar seus tons de pele, sugerindo sua preocupação com o aspecto multi-racial, e, ainda com a diversidade étnica e suas mestiçagens. Geralmente, o local de origem da personagem indica a etnia, como o deslocado de Chipeta, em “Tio, mi dá só cem”, ou o infeliz José Carlos Lucas, mulato, natural do Kuando Kubango, em “O homem que nasceu para sofrer”, ou, ainda o angolano branco, José Carlos, nascido no Úcua, saído do Huambo, e da mulata brasileira, Jussara, em “Ngola Kiluanje”, ou no amor socialmente condenado de Luvulu Francisco, bakongo, com uma linda mulata do Camaxilo, na Lunda Norte, Inês Faria, no conto “Shakespeare ataca de novo”, ou de Miguel Ximuto, filho de pai catetense e mãe biena, sendo mestiço de kimbundu com ovimbundu,e de seu inseparável amigo Adalberto Chicolomuenho, natural de Namibe, mestiço de ovimbundus originários do Huambo, de modo a recuperar o sentido de identidade nacional a partir de um ponto de vista em que negros, brancos e mulatos terminem por integrar a nação Angola, bem como os originários das diversas etnias, enquanto discute as causas dos preconceitos contra os mulatos, assim como o desconhecimento do povo sobre estes assuntos. Para o narrador, "o preconceito e a rejeição são filhos do desconhecimento e da ignorância" (Melo, 2001, 123)
O enfoque de João Melo sobre o musseque, tratado como espaço privilegiado ocupado pelos diversos grupos étnicos que se deslocam para as cidades, revela uma opção por retratar esses diferentes povos, ironizando ou exaltando, ou apenas revelando as origens de seus problemas, num processo de desvelamento de suas constituições étnicas e suas mestiçagens. E, ao fazê-lo, desmascara os inimigos do pluralismo cultural, os partidários da “genuína angolanidade”, a exemplo do estilista de “O efeito Estufa” - já ironizado pelo nome de Charles Dupret - cuja preferência pela cor preta em todos os seus trajes, modelos e cenários funciona como alegoria irônia e denunciam um neo-racismo, indicado pela preferência dos modelos que atendam a estereótipos físicos europeus, porém africanos, enquanto os consumidores desta suposta autenticidade não são os autóctones – a maioria metida nos matos ou nos musseques de Luanda -, mas a classe abastada. Os teóricos do pós estruturalismo, Roland Barthes e Humberto Eco também não escapam à sua crítica: “se fossem capazes de olhar um pouco para lá (ou melhor, para cá) do Mediterrâneo” (Melo, 2001, p.64)
A forma que o narrador encontra de mostrar ao estilista onde está a verdadeira angolanidade é remetendo-o – no conto por alternativa própria da personagem – ao bairro da Mutamba, onde desfila sobre os imundos contentores de lixo, uma forma de revelar a superficialidade desses posicionamentos radicais sobre “identidade”, tendo em vista problemas muito maiores: a miséria e a corrupção locais, esta delatada no conto “O elevador”, ou a desigualdade social, no conto “O cortejo”.
A temática do musseque se confirma no conto “O Cortejo”, o qual trata de parodiar os pomposos cortejos tradicionais que se seguem aos casamentos católicos das abastadas e influentes famílias nas tradições eurocêntricas. Ocorre que, neste, o percurso do planejado e glorioso séquito é deslocado para os inúmeros musseques da cidade, onde as imagens da miséria e da degradação contrastam com o luxo e o esplendor da carrugem em estilo inglês especialmente alugada para transportar o casal de noivos. Neste, a bela visão da cidade que seria oferecida aos convidados das bodas, planejada anteriormente pelas famílias dos nubentes se opõe às imagens oferecidas pelo percurso decidido pelos cavalos, que conduzem o cortejo: o Catambor, o Prenda, o Cassequel do Buraco, o Bairro Popular, o Rangel, o Precol, o Sambizanga, o Petrangol, o Tunga Ngo, o Kikolo, passando por todos o conhecidos e populares mercados a céu aberto, de forma a desvelar que, nesses espaços, as pessoas se encontram “especadas às portas das casas, esperando não se sabe o quê, andando sem rumo pelos becos, ruas e vielas ou amontadas em mercados de nomes provocatórios (...) lutando ferozmente pela sobrevivência (...)” (Melo, 2001, p. 135 ) traz à tona o sentido ou a ausência de sentido da vida no início do terceiro milênio para os desprovidos da propriedade, dos meios de produção e, também do capital, no espaço mesmo do sistema capitalista.
Mas não é apenas da situação do deslocado para o musseque ou os bairros populares que trata a obra de João Melo, antes aborda outras situações de deslocados que, por força das circunstâncias políticas viram-se obrigados a empreender fuga para o Brasil ou Portugal, como em “Ngola Kiluanje”, ou, ainda, daqueles que buscaram o exílio de forma voluntária, como as persoangens de “O homem que nasceu para sofrer”.
Nas discussões que os narradores abrem sobre as permanências e saídas, enfim, em torno dos deslocamentos dos povos, a ironia e a paródia funcionam sempre como marca de um estilo particular, construída de forma explícita, quase escancarada, tanto que o leitor pouco especializado é capaz de percebê-la, o que o diferencia de outros autores, como Pepetela, por exemplo.
A utilização de termos escatológicos e vulgarismos funcionam muitas vezes, como a linguagem subversiva que revela sua relação com o “universo do marginal”, como escrita parafrástica da linguagem dos excluídos, muito provavelmente relacionado à questão da representação da personagem.
Considerado por alguns críticos como um escritor cuja estética se inclui no que alguns consideram como “pós-modernista”, João Melo faz da historiografia algo presente em sua ficção em alguns textos, apresentando-a de uma forma cronológica em alguns contos e, em outos, por meio de marcas referenciais a determinados fatos e acontecimentos relevantes, de forma a entremeá-los às ficções vividas por seus personagens, confirmando em um ou outro conto algumas características historiográficas. A afirmação da história por meio desse viés e a contestação dela por meio da ironia e de certas vozes instalam paradoxos na produção textual, um dos efeitos da estética pós-modernista.
A ironia e sua política, que neste caso se presta ao desmascaramento do que se coloca em evidência na construção literária prestam-se, no caso da escrita de João Melo, a (re)fazer por meio do literário, as imagens dos abusos políticos e da degenerescência dos indivíduos após o caos da guerra civil, desvelando os contrastes entre a produção de riquezas e a condição das massas.
A discussão das tradições angolanas e, especialmente, a absoluta originalidade perde sua aura de exclusividade por meio de afirmações acerca dos estágios já vividos por outras civilizações em tempos remotos, enquanto investe na idéia da não-estaticidade dessas tradições, mas na da constante renovação, como no conto “Shakespeare ataca de novo”.
A questão do problema multicultural em Angola é discutido em praticamente todos os textos de Filhos da Pátria, de forma que, ao delinear os contornos das personagens, raramente se esquece de analisar seus suas cores, sugerindo sua preocupação com o aspecto multi-racial, e, ainda com a diversidade étnica e suas mestiçagens, de modo a recuperar o sentido de identidade nacional a partir de um ponto de vista em que negros, brancos e mestiços terminem por integrar a nação Angola, bem como os originários das diversas etnias.

O posicionamento político de João Melo no que diz respeito ao racismo, tem despertado controvérsias e polêmicas sobre seu comportamento e lhe valido, ainda, muitas críticas por parte daqueles que pretendem alterar imediatamente uma situação e não se dão conta da necessidade do tempo na acomodação dos processos políticos, quanto por aqueles que tratam de radicalizar e entendem que o país deveria ser governado unicamente por representantes das etnias locais. Enquanto isso, a luta de João Melo por igualdade racial continua, seja por meio da literatura, veiculando idéias nem sempre compreendidas, seja por meio do jornalismo, ou da própria política.


BIBLIOGRAFIA
ABDALA JR., Benjamin. A escrita neo-realista. São Paulo: Ática, 1987.


MELLO, João. Filhos da Pátria: contos. Luanda: Editorial Nzila (Coleção Letras Angolanas), 2001.


MACEDO, Tania. Da fronteira do asfalto aos caminhos da liberdade. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP- Universidade de São Paulo, 1985. Orientador: Prof. Dr. Benjamin Abdala Jr.